Você nasceu para isso
Intrínseca
série ---
272 páginas | 2019
Sam Hurley, professor, e sua esposa Merry, cenógrafa, trocam os confortos de Nova York por um estilo de vida completamente diferente em uma casinha isolada na Suécia. Apesar do quadro idílico que o casal com um bebê recém-nascido em paisagens de contos de fada representa, problemas com raízes muito profundas ameaçam o relacionamento. Sam, que nunca contou à esposa que na verdade foi demitido da universidade, também mente sobre seu dia a dia na nova cidade. Merry, por sua vez, sempre escuta do marido que nasceu para ser dona de casa, mas não sabe o que fazer com o ódio que alimenta por todas as tarefas cotidianas: a jardinagem sem-fim, a arrumação da casa, o preparo de refeições para a família e os cuidados com um bebê que por ora só parece dar trabalho.
O instável equilíbrio da família se perde por completo com a visita da melhor amiga de Merry, a glamourosa Frank. Ela conhece Merry muito bem, conhece sua história, e agora, com a proximidade, é capaz de ver quem Sam realmente é. Mas Frank tem os próprios segredos, e, à medida que sua narrativa se junta à história do casal, fica claro que ela sofre pelos próprios pecados e talvez não seja capaz – ou não queira – salvar ninguém.
Você nasceu para isso retrata a escuridão que há no cerne dos relacionamentos mais íntimos. Sem heróis e permeada por uma teia de segredos, obsessão e inveja, é um relato violento de vidas que quase nunca são o que parecem e das partes de nós que não somos capazes de admitir.
Design
Eu adoro demais quando uma capa ganha ainda mais camadas de interesse e informação quando você termina de ler a história. Você passa a perceber nuances que não tinha visto antes, e isso é tão legal! \o/
Olhando agora, enquanto tento escrever essa resenha, eu consigo gostar ainda mais dessa capa.
Primeiro que ela tem em primeiro plano três das cores básicas: amarelo no título; vermelho no vestido da modelo; e azul na bolsa.
O amarelo ganha um peso ainda maior por ser tão contrastante com o fundo “florestal” que representa o ambiente da Suécia para onde o casal protagonista vai.
A modelo tem toda uma atitude da mulher “perfeita e blasé”, mas ao mesmo tempo, se você olhar com carinho, vai perceber que ela está com uma rachadura imensa, dividindo-a ao meio! Será que a beleza e a atitude são reais de verdade, ou é uma fachada tão frágil que esconde alguma coisa indesejada em seu âmago?!
Confesso que a primeira que vez que olhei pra imagem, achei que a modelo estava com headphones, porque não identifiquei as linhas escuras como rachaduras. Depois achei que eram galhos da floresta do fundo. E só com contexto é que tudo passou a fazer mais sentido.
E, nossa!, como eu gosto do contraste desse amarelo 100%! Quando eu estava na faculdade, li alguma coisa sobre como a sobreposição de preto em amarelo traz um dos melhores contrastes para sinalização. Mas o oposto aqui também funciona tão perfeitamente! Você enxerga de primeira o título, e depois começa a perceber as outras nuances da capa. <3
Na quarta capa, só frases impactantes para deixar o futuro leitor interessado, sobre uma imagem um tanto quanto lúgubre de uma floresta ao nascer/pôr do sol. Você já tá com aquela sensação de angústiazinha?!
E o melhor de tudo: as laterais do livro são todas pintadas de vermelho. O.O Acho tão legal quando as editoras extrapolam a arte para as laterais. <3
O miolo ganha ainda mais peso com essa insinuação de cor ao longo das páginas. É como se você estivesse cercado de uma intenção “oculta” quando toda a volta do livro tem uma cor. O que você acha que o vermelho remeteria aqui? ^.~
Falando do miolo, uma das coisas que mais me chamou a atenção foi a falta de marcação de diálogos. Isso é tão importante porque mostra pro leitor ainda mais o quanto nada do que é dito pelos personagens pode ser realmente levado como verdade.
A partir do momento que você não tem a marcação do travessão, é como se você estivesse dizendo pro leitor que aquela fala de um outro personagem é a interpretação do personagem-narrador do que “realmente foi dito”. É tudo uma forma de conduzir e ludibriar o leitor, para que enxerguemos o mundo da forma como o personagem está contando pra gente!
Além disso, cada capítulo é sempre marcado com o nome do personagem responsável por seu ponto de vista. O que eu gostei aqui também foi a escolha de colocar todas as informações de paginação, nome do autor e título no rodapé da página.
Isso “limpa” o topo da página e diminuiu um pouco a distração do leitor. Em um livro como Você nasceu para isso, quanto menos distração do que está sendo contado, ou ocultado, na história, ainda melhor.
Fora isso, fontes, mancha gráfica, entrelinhas, tudo extremamente agradável e equilibrado na página. Projeto amorzinho da Intrínseca. <3
História
Tirei toda a gordura do forno e subi na escada para limpar a parte de cima da geladeira. Às vezes gosto de escrever mensagens na poeira. SOCORRO, escrevi hoje de manhã, de bobeira. p.19
Ok. Então todo os personagens de Você nasceu para isso são doentes e a história é completamente perturbada. E eu estou questionando o quanto eu não sou meio probleminhas também.
FIM!
Tá… não dá pra ser uma resenha assim, mas eu juro que tenho um pouco de vontade de fazer algo bastante conciso mesmo.
Começando pelo começo… o livro é recheado de gatilhos. Nomeie um! Ele vai estar aqui. Machismo, misoginia, relacionamento tóxico e abusivo, maternidade tóxica, competição entre mulheres, traição… cada um deles tem seu pequeno espaço dentro da história de Michelle Sacks.
“Mas Samara! Então porque você leu esse livro doentio?!”, você me pergunta. Bem… porque estava instigante. Mesmo vendo o quão errados eram os personagens, eu queria ver para onde a história ia caminhar.
Se eu pensar na parte que é realmente viciante, na parte mais fofa, percebo que é a cara que elas fazem quando as magoamos. A maneira como racham e quebram. Mesmo a mulher mais forte é só uma menininha por dentro, desesperada para que você note algo nela. Tão ansiosa que vai fazer tudo que você pedir. Coisas que a rebaixarão.
Você é um homem cruel, Sam.
Já ouvi isso mais de uma vez. Sempre me sinto bem, apesar de não saber por quê. p.55
E assim, não é para um desenvolvimento bonito.
Acho que desde Garota Exemplar, eu comecei a entrar em contato com cada vez mais personagens que não se pode confiar. Com narradores que contam uma história que está mais para te desviar do desenvolvimento real, do que para te contar as “verdades”.
Hoje em dia até consigo me sair bem nesse tipo de leitura, mas me sinto constantemente “traída” e “ludibriada” pelos personagens. Isso faz com que me sinta um tanto burra, ou inocente, ou ingênua… o que me irrita de certa forma.
Sam acha que as mulheres têm que ser controladas. Guiadas, diz ele, porque mulheres não são boas em tomar decisões. Nunca sei se ele está falando de todas nós. Ou só de mim. p.114
Mas pelo menos eu me sinto “vingada” porque, normalmente, esses personagens, como os do livro de Sacks, são naturalmente odiáveis. Eles são construídos com o intuito de mostrar o que pode haver de pior nos serumano, e exacerbam tudo de forma a deixar o leitor incomodado.
De forma a fazer com que realmente odiemos os personagens e, de certa forma, torçamos para que eles se deem mal. O que nos torna doentes em certa conta também, não é mesmo?
Entenda que os personagens não são anti-heróis que você gosta de odiar, porque você sabe que eles vão acabar fazendo algo bom.
Não.
Os personagens são mesmo ruins; maus, se você preferir algo mais maniqueísta. Tem MUITOS (se não todos) os defeitos condensados em parágrafos e diálogos que te fazem sentir um tico mal consigo mesmo por estar lendo.
Não só por estar lendo. Se em alguma passagem você sente um quê de empatia pelo personagem, será que um pouco da monstruosidade que o constrói também faz parte de você?
Sou um monstro, falei, não sou? (…)
Ela se levantou e abriu a porta.
Não, Merry, respondeu. Acho que você é uma mulher como muitas outras. p.197
Nas minhas anotações do Skoob, em 13% da leitura eu já sabia que a coisa ia desandar de uma forma beeeem complicada rapidamente. E bem, tamo aqui pra isso, não é mesmo?
A história é contada através do ponto de vista de três personagens: Merry, a jovem esposa e mãe, que abandonou tudo no EUA para ir morar com o marido em outro país; Sam, o marido que foi demitido de seu emprego na universidade e decide recomeçar tudo na Suécia; e Frank, a melhor amiga desde a infância de Merry.
No começo, Merry e Sam passam a ideia de um casal super feliz de comercial de margarina, com seu pequeno bebê, cheios de satisfação por renovarem a casa que Sam recebeu de herança. Mas quando cada um começa a ter sua voz mais definida, você começa a perceber que existem coisas podres dentro desse pote de margarina.
Merry não suporta a ideia da maternidade. Quando ela fica sozinha com seu filho Conor, ela o deixa chorar indefinidamente enquanto assiste televisão. Esquece de alimentá-lo. E tenta a todo custo encontrar o amor maternal e incondicional que dizem que deve existir em todas as mães.
Sou mesmo uma mulher ocupada. Foi para isso que nasci, segundo Sam. Ele não cansa de mim assim, doméstica e maternal. Talvez esteja certo e eu tenha nascido para isso. Realmente pareço me sair muito bem. Poderia dizer que é um dom, se não soubesse o quanto me esforço para fazer tudo isso. p.17
Enquanto isso, Sam deixa Merry sozinha no fim do mundo da Suécia para tentar se recolocar no mercado. Mas ao mesmo tempo, ele é um marido péssimo que só está presente nos momentos “bonitos” da criação de seu filho. Ele abandona Merry sozinha para cuidar da criança e é um homem extremamente machista e misógino, controlador ao extremo.
Eu ri. Vocês, mulheres, sempre tão sensíveis. E acham que querem comandar o mundo. p.45
Para ele, todas as mulheres são burras e tem que ser guiadas no que devem fazer com suas vidas. Ele sufoca toda individualidade de Merry ao mesmo tempo que a domina e seu filho. Ambos são suas propriedades.
Talvez as outras mulheres me permitam amar mais Merry. Porque são descartáveis, enquanto ela é permanente. Porque ela é e sempre vai ser minha. p.79
Por fim, Frank chega para desestabilizar ainda mais essa balança de aparências precariamente mantida pelo casal. Existe uma competição extremamente tóxica entre as “melhores amigas”, ao mesmo tempo uma carência e necessidade abusiva entre elas. É como se cada uma se alimentasse da loucura e dos abusos da outra e precisasse disso pra viver.
Nós trazíamos à tona o pior uma na outra. Inveja, raiva, mentiras. E demorou para aprendermos a controlar o impulso de machucar com os punhos. Descobrimos que as palavras e os silêncios são os verdadeiros assassinos. A privação de carinho, a esperta criação de boatos e meias verdades, o salgar hábil das feridas que sabemos que mais machucam. É aí que está o poder. Um tipo diferente de violência. p.92
De certa forma cada um dos protagonistas é o retrato de sua família disfuncional de origem. Merry foi negligenciada pela mãe e pelo pai. Frank tinha uma mãe amorosa mais “fracassada” e um pai viciado em jogo. E Sam foi abusado pela mãe e enganado sobre a identidade de seu pai.
Os três juntos desestabilizam a “harmonia” ilusória que a Suécia criou para Merry e Sam.
Tudo desanda de vez quando um fato CHOCANTE acontece na vida dos personagens e todo o castelo de cartas construído por cada um começa a desmoronar. Todas as enganações e mentiras, o ódio e o desamor, que estavam pairando próximo à superfície afloram para colocar todos contra todos.
É um livro pesado. Ele é cheio de quotes e “afirmações” que incomodam, mas que refletem, com certeza, o que muitas pessoas sentem e pensam, e que com certeza guardam (ou não) dentro de seus armários pessoais.
É um livro que incomoda por todos os temas complexos que trata, mas ao mesmo tempo ele permite uma reflexão sobre os relacionamentos que podemos ter com nossos amigos, famílias, amores.
Não é um livro pra todo mundo, mas a curiosidade de entender como a dinâmica doentia entre os personagens vai se desenvolver e como o fato CHOCANTE vai ser resolvido acaba prendendo você até o fim.
Se você de alguma forma gostou de Garota Exemplar, pode ser que Você nasceu para isso seja uma opção de leitura também.
Até a próxima! o/
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4 Comentários
Olha, eu até gostei de “garota exemplar”… Mas por tudo que você falou na resenha, não tem tanto haver não rs
E pela resenha, não entendi a nota – nem me so pelo design, com o “uma das coisas que mais me chamou a atenção foi a falta de marcação de diálogos”. Eu acho isso PÉSSIMO. Não é “cada leitor pensa o que quiser”, mas uma confusão sem tamanho de “mas que p* eu tô lendo?”.
Sei lá, eu não leria um livro desses… Talvez porque a leitura, para mim, seja uma “válvula de escape” da realidade, e goste de ler coisas melhores do que o que vivenciamos. Ter que acompanhar um machista 100% por boa parte da história? Tô fora. Já é difícil viver com o pouco que sofri (comparado a muitas mulheres por aí), que dirá ter que ouvir a “voz” de um imbecil que você quer dar um soco na cara rs
Quando eu falo que tem a ver com Garota Exemplar é mais no sentido dos personagens “mentirosos” e “escorregadios” do que a história propriamente em si. O plot dos dois livros é completamente diferente.
E eu total te entendo em não querer um livro desse tipo. Mas ao mesmo tempo, você não acha importante conseguir identificar esses tipos de comportamentos tóxicos e perceber que não quer que isso se propague; que eles não devem seguir adiante? Talvez, algumas pessoas precisem desse choque de realidade para perceber que sofrem esse tipo de abuso em algum nível da sua vida.
E sobre não ter marcação de diálogo, eu achei interessante porquê não é a autora te dando a oportunidade de entender o que quiser. Na verdade, são os personagens “recontando” o que aconteceu pra você. No que provavelmente é a visão deles. Não é um diálogo de verdade, sabe?
Adoro quando você aparece por aqui! <3 É sempre bom ouvir suas opiniões.
Hum… Faz sentido a questão do “choque de realidade” que você comentou. O problema dessa lógica é: não necessariamente quem ler verá dessa forma (como algo doentio), mas pode entender como sendo “normal”. Exemplo disso é romantizarem Christian Grey em 50 tons de cinza, quando o cara persegue a mulher até por GPS… Da marcação dos diálogos: não sei nesse livro, mas geralmente, quando o personagem “conta” a história assim, costuma ser cansativo. Ao menos, os que li rs
Ah, e tô sempre por aqui! Na maioria das vezes esqueço de comentar, porque abro o blog no celular quando tô no ônibus… Aí antes de deixar comment, tenho que descer, e acabo esquecendo de voltar só pra isso xD
Pois é… a questão da “normalização” sempre vai existir. Acho que o “choque” só funciona mesmo quando você já está de alguma forma com uma brecha aberta para esse tipo de exposição.
Christian Grey ser considerado um “bom partido” ainda me deixa incomodada.
<3 Eu sei que você sempre vê o blog, não estou cobrando nem nada. Mas saber que você separou um espacinho de tempo pra voltar e comentar sempre me deixa feliz. ^.^