A Forma da Água
Intrínseca
série ---
352 páginas | 2018
Richard Strickland é um oficial do governo dos Estados Unidos enviado à Amazônia para capturar um ser mítico e misterioso cujos poderes inimagináveis seriam utilizados para aumentar a potência militar do país, em plena Guerra Fria. Dezessete meses depois, o homem enfim retorna à pátria, levando consigo o deus Brânquia, o deus de guelras, um homem-peixe que representa para Strickland a selvageria, a insipidez, o calor — o homem que ele próprio se tornou, e quem detesta ser.
Para Elisa Esposito, uma das faxineiras do centro de pesquisas para o qual o deus Brânquia é levado, a criatura representa a esperança, a salvação para sua vida sem graça cercada de silêncio e invisibilidade.
Richard e Elisa travam uma batalha tácita e perigosa. Enquanto para um o homem-peixe é só objeto a ser dissecado, subjugado e exterminado, para a outra ele é um amigo, um companheiro que a escuta quando ninguém mais o faz, alguém cuja existência deve ser preservada.
Mistura bem dosada de conto de fadas, terror e suspense, A Forma da água traz o estilo inconfundível e marcante de Guillermo del Toro, numa narrativa que se expande nas brilhantes ilustrações de James Jean e no filme homônimo, vencedor do Leão de Ouro em 2017. Uma história cinematográfica e atemporal sobre um homem e seus traumas, uma mulher e sua solidão, e o deus que muda para sempre essas duas vidas.
Design
Já falei em alguma resenha aqui no blog sobre o quanto eu gosto de livros de fantasia com capas ilustradas. Essa é tão, mas TÃO BONITA, que eu fui atrás do ilustrador para saber quem é.
James Jean é um ilustrador de Taiwan que tem um trabalho altamente detalhista e com muito “ruído” visual. Chega a ser uma arte confusa e macarrônica em algumas imagens, mas ainda assim é extremamente bela e impactante. E quando você compara com a ilustração da capa e das internas que têm ao longo do livro eu fiquei pensando se ele não “segurou a onda” para fazer desenhos mais leves e menos detalhistas.
Fora a capa, né. O detalhe das escamas do deus Brânquias, a expressão de enlevo de Elisa, e o movimento de seus cabelos dentro da água são muito realistas e envolventes. E a escolha cromática desse verde/azul turquesa, que passa a exata sensação de profundidade em uma massa de água. Não o suficiente para ficar escuro, mas fundo o suficiente para afetar sua percepção das demais cores.
Acho legal a escolha de fonte pro título e pros nomes dos autores ser uma sans-serif bastante fina, provavelmente a versão light desta família. Dessa forma, ela tem um peso de ocupação no espaço da capa, mas ao mesmo tempo ela não interfere no entendimento e na compreensão da ilustração. E é obviamente num estilo bastante art deco. Não é o primeiro livro que eu vejo que utiliza uma família inspirada nesse período de arte, mas aqui faz todo o sentido com a época em que se passa a história.
Na quarta-capa não temos uma sinopse, mas sim um quase subtítulo para a história. Mais uma vez, as flora aquática desenhada por Jean é praticamente peça única para ilustrar e compor toda a arte da quarta-capa. Só achei uma pena a editora não ter usado a parte interna da capa de alguma forma, meio que para terminar o “envelopamento” do conceito de “fundo da água”. Teria ficado ainda mais perfeito.
As ilustrações podem não ter sido “completas” na capa, mas elas invadem a falsa folha de rosto e a folha de rosto, em uma chapada escura de flora aquática. Elas também estão presentes em alguns momentos da história, representando personagens importantes.
O livro é dividido em quatro partes e em todas elas a abertura é igual: uma página com chapada de cinza para abrir a parte; a ilustração das folhagens que aparece no começo no livro com o “nome” da parte com a mesma fonte da capa; e mais uma página de chapada de cinza. Isso faz com que o primeiro capítulo sempre inicie em uma página ímpar.
Falando em capítulos eles são relativamente curtos, todos numerados, e ainda são contínuos, assim que um acaba o outro já aparece em seguida, não abre em uma nova página. Além disso, apesar de alternar o ponto de vista dos personagens a cada capítulo, você só vai saber quem está contando enquanto lê.
Sobre a parte textual do miolo, eu gostei bastante da mancha gráfica de A Forma da Água. Como quase todos os livros da Intrínseca, ela é bem equilibrada na página, tem um bom tamanho de fonte e espaçamento, com um fonte bem legível e gostosa de ler. Não me lembro de ter visto essa família em outro livro da editora, mas eu gostei bastante dela.
No cabeçalho a gente vê o título do livro e o nome da parte que estamos no momento e, tanto ele quanto os números de páginas, também usam a fonte do título do livro na capa.
Uma coisa interessante que você pode perceber ao folhear o livro é que em algum momento começam a aparecer partes que foram censuradas. E isso é muito interessante de encontrar, porque reflete completamente o quanto um dos personagens está perdendo a sanidade. O leitor ser impactado visualmente por isso no livro, perceber que afeta inclusive o nosso entendimento é muito legal!
História
“Por bilhões de anos, o mundo conheceu a paz. Foi apenas com a invenção do gênero – especificamente machos, esses abanadores de cauda, chocadores de chifres e batedores de peito – que o planeta começou seu declínio na direção da autoextinção. Talvez isso explique a descoberta de Edwin Hubble de que todas as galáxias conhecidas estão se afastando da Terra, como se fôssemos um planeta inteiro de arsênico.” p.171
Não vi A Forma da Água no cinema. Não pude descobrir como a história de amor de Elisa e o deus Brânquia foi contada nas telonas e conquistou todo mundo. E nem como essa história foi tão impactante que a academia de cinema deu o Oscar de melhor filme e diretor para o Del Toro.
Não sei como foi a representação de Elisa Esposito feita pela Sally Hawkins, ou a Zelda da Octavia Spencer. Mas ainda assim, a forma como Kraus e Toro construíram e deram voz aos personagens aqui no livro foi o suficiente para eu me apaixonar por todos os personagens.
Eu já conhecia a dupla del Toro/Kraus de um outro livro também lançado pela Intrínseca que eu não curti tanto. Por algum motivo, Caçadores de Trolls não foi uma história que me cativou, e de certa forma me deixou com uma certa reserva em relação aos autores.
Ainda bem que A Forma da Água era uma coisa completamente diferente. Mais próxima de uma fantasia surreal, e com personagens adultos (o que tem feito bastante diferença pra mim ultimamente), a história é encantadora, angustiante, revoltante e apaixonante, tudo ao mesmo tempo.
Acho que o melhor de tudo é que o livro não é focado somente no ponto de vista de Elisa. Todos os personagens que aparecem ao longo da história, são de alguma forma protagonistas e donos de seus capítulos ao longo do livro.
Assim, a gente pode acompanhar diversos lados e visões de uma mesma situação. Acho que com isso é possível humanizar e criar empatia até com o pior personagem, e de quem provavelmente é esperado/desejado que o leitor sinta asco e ódio.
No fim das contas, por todo mundo ter voz e vez ao longo das páginas, o envolvimento de Elisa com o Brânquias não é tão valorizado e, talvez por isso, eu não consegui ver o amor/a paixão se formando entre os personagens. De alguma forma, descobrir que Elisa quer salvar o Brânquias porque o ama é quase um “Ah, é?!” que a gente solta. Então você meio que faz um “Então tá.” e continua a história, porque o resto é MUITO BOM.
“Uma menina disse: ‘Ele faz com que eu me sinta alguém.’ E Elisa ficou com isso na cabeça por meses. Qual seria a sensação de se sentir alguém? De repente, existir não apenas em seu mundo, mas no de outra pessoa também?” p.77
É tão bom que espalhei diversos post-its ao longo das páginas! <3
Acho que o mais importante pra mim em A Forma da Água é a quantidade de representatividade que se tem na história. Elisa já foge dos padrões de protagonista por ser muda. Mas os outros personagens também são de alguma forma importantes para alguma minoria. E ao mesmo tempo mostra o quanto essas mesmas minorias não necessariamente se apoiam ou ajudam.
Zelda é uma mulher negra e gordinha; Giles é um senhor de terceira idade e gay. Todos os colegas no turno de trabalho de Elisa e Zelda tem algum tipo de característica também: uma é latina e esquentada, o outro é albino, o outro é vesgo…
“Não era para ser um ambiente com tanta rivalidade. Zelda é negra e gorda. Yolanda é mexicana e simplória. Antonio é um dominicano estrábico. Duane é mestiço e não tem dentes. Lucille é albina. Para Fleming, todos eles são iguais: incapazes para outro trabalho, portanto, fáceis de confiar.” p.29
Existe o homem militar branco, machista e opressor, e sua esposa oprimida que sofre com violência doméstica do marido. Racismo, homofobia, machismo, muita misoginia são representados de forma sensível para que o leitor seja impactado de uma maneira ao mesmo tempo gentil e chocante. É quase uma sacudida mental, um tapa na cara com luvas de pelica.
Principalmente a forma como a mulher é (mal) vista, desmerecida, objetificada e até mesmo desprezada no período em que se passa a história é feito de uma forma muito bem representada. Em diversos momentos eu me sentia mortificada com a maneira como Elaine (a esposa do militar Strickland) era tratada pelo próprio marido, ou quando Zelda analisava o quanto era uma mulher ainda “pior” do que a muda Elisa, uma vez que a primeira tem o agravante da cor de pele.
“Elisa é uma boa garota, mas nunca vai entender. Como poderia? Se as coisas derem errado na Occam, não é a branca quem vai levar a culpa. Elisa sempre pega moedas esquecidas nos laboratórios como se não fosse nada de mais. E se for uma armadilha? Isso nunca passaria pela cabeça dela.” p.84
Sério, você fica se sentindo bem mal. E pensar que não estamos tão distantes das décadas de 1960 ou 1970 assim…
Strickland é o personagem mais pesado e difícil de acompanhar. Ele foi o responsável por levar o Brânquias da Amazônia para os EUA, depois de 17 meses de perseguição pelos rios e igarapés. Definitivamente, o militar passa por algum tipo de trauma agressivo que o transforma em um ser praticamente animalesco.
A forma como ele ficou perturbado pela natureza selvagem, praticamente como uma síndrome de stress pós-traumático, vai interferir na forma como ele se relaciona com sua esposa, sua família, e seus colegas de trabalho. Vai inclusive fazer com que perca o pouco de humanidade que ele pode ter tido um dia.
“- Deus parece humano, Dalila. Ele se parece comigo, com você – diz ele, indicando a porta com a cabeça. – Embora, se formos honestos, ele provavelmente se pareça um pouco mais comigo.” p.101
Vai interferir principalmente na forma como ele passa a “idealizar” a Elisa. Ela é a sua mulher ideal: submissa, bonita, e o mais importante, muda. Strickland é perturbador na maior parte do tempo e, mesmo ele sendo obviamente o maior “vilão” de toda essa história, ainda é possível compreender que ele tem muitos problemas e é extremamente reprimido e controlado.
“Strickland sufoca o ódio, a aversão e o medo. (…) A sensação mais vantajosa é não sentir nada.” p.19
“(…) mas ele acha que a mulher é bonita, sem dúvida o suficiente se continuar usando sapatos como aqueles. Os sapatos têm estampa de oncinha. Estampa de oncinha. Se Elisa não os estava usando para o prazer dele, então era para o de quem?” p.210
Uma das coisas que eu mais gostei foi o relacionamento entre Elisa e Zelda. As duas mulheres são realmente amigas, e a gente consegue perceber o quanto Zelda ama de verdade ao outra. Quando Elisa chegou para trabalhar na Occam, a primeira coisa que Zelda se propôs a fazer foi aprender a linguagem de sinais. <3
“São poucas as pessoas em que Elisa tem tanta fé quanto em Zelda: a amiga vai encontrar um jeito de reclamar e vai ser engraçado, e elas vão conseguir se esgueirar daquela película fina de humilhação criada por todos aqueles homens arrogantes.” p.62
Em dado momento durante o desenvolvimento da história, dá a entender que a amizade das duas pode não ser tão sólida quanto Zelda imaginava. Talvez ela estivesse projetando em Elisa seus sentimentos. Mas tudo se resolve de uma forma tão linda e emocionante que vale a pena a angústia que é ver Zelda não tendo certeza sobre o relacionamento com Elisa.
Outra mulher que amadurece e se fortalece ao longo da história é Elaine, a esposa de Strickland. Cansada da instabilidade emocional do marido, e da vida de dona de casa, ela se permite encontrar um emprego e trabalhar escondido. É no ambiente tóxico de trabalho de uma agência de publicidade que a gente vê como uma mulher é objetificada. Ela é o motivo para piadinhas, apalpadelas, paternalismos.
“Qual seria a sensação, perguntou-se ela, de ser um homem e modificar com tanta tranquilidade suas intenções, sem medo das consequências?” p.182
Mas é através dessas experiências e de chegar ao limite em seu relacionamento que ela vai amadurecer sobre o tipo de mulher que ela quer se tornar.
“Assim, ela se dispôs a fazer o seu melhor. Queria provar que era mais que um traseiro apertável. Sem dúvida era o mesmo objetivos das datilógrafas e secretárias da agência. Ou das mulheres no ônibus. Ou das serventes que esfregavam o chão no laboratório de Richard.” p.181
Ainda existem o ponto de vista de Giles, que é um ilustrador em um mercado que considera que arte tradicional em publicidade é obsoleto, e que tem um escândalo em seu passado. Giles é o vizinho de Elisa nos apartamentos sobre o cinema Arcade, e ele passa a ser peça chave para a possibilidade de salvar Brânquias do laboratório. E também é o responsável por algumas cenas mais tristes que tratam sobre homofobia e velhice.
Em época de guerra fria, não poderia faltar o ponto de vista do cientista russo espião. Um dos responsáveis por estudar o “recurso” (o nome militar que deram pro Brânquias), Bob/Dmitri só quer ter a oportunidade de voltar para seu país e rever seus pais, ao mesmo tempo que está maravilhado pelo deus Brânquia. Ele é um dos outros pontos de conflito com Strickland. A voz da ciência contra a voz do militarismo.
“(…) Nós o arrastamos para cá. Nós o torturamos. O que vem depois, Leo? Que espécie vamos exterminar em seguida? Nós mesmos? Tomara que sim. Merecemos esse destino.” p.199
E por último, já quase no final, temos um pouco da voz de Brânquias mesmo. Ele é um tanto quanto selvagem, plural, e maravilhado com esse mundo diferente, ameaçador e agressivo para onde foi levado.
Gostei muito que em A Forma da Água os capítulos são relativamente curtos e alternam frequentemente o ponto de vista entre os personagens. Isso trouxe um dinamismo para a história e para a construção e evolução de cada um dos “protagonistas” que, mesmo inicialmente sendo quase introspectivos e contemplativos, não fez com que o livro se tornasse cansativo. Mas a ação e o movimento só engrenam e acontecem mesmo na parte final da história.
“Uma ausência de medo, percebe Elisa, pode ser confundida com felicidade, mas não é a mesma coisa. Nem de perto.” p.269
O livro me tocou, me deixou emocionada, enojada com a forma como as mulheres eram tratadas, mas feliz em como as coisas se desenrolam e no desenvolvimento e evolução dos personagens. Gostei especialmente por todas as mulheres terem voz e participarem ativamente de sua própria libertação e empoderamento, mesmo quando oprimidas e desmerecidas pelo homem.
A única coisa que me deixou um pouco triste é não haver uma explicação do porquê o governo americano querer o deus Brânquias e muito menos de onde veio a informação que ele existia.
Se você também não viu o filme, ler A Forma da Água vai ser um ótima forma para esperar uma futura oportunidade. E também vai te dar subsídios para comparar com a obra cinematográfica. ^.~
Até a próxima! o/
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